segunda-feira, 2 de julho de 2007

Mutações

As coisas haviam mudado. E qual foi o tempo na vida em que não haviam mudado? Sempre sentindo justamente o tempo, como algo que passa sem que façamos parte, como um rio onde não mergulhamos, nem a pau!, por medo, receio, miséria de espírito. E os que se jogaram nas águas que cairiam vertiginosamente de alturas impossíveis, foram, junto com a morte, escorrendo em esquecimento e inaptidão de viver.
E havia também esta mudança de nossa própria vida. Mudar de carro, de casa, de música, de mulher. Fazer da mudança um cotidiano insípido até abarrotar os cérebros de alterações diárias, e colocar sob os olhos manchas escuras e entre os lábios uma proteção de toque, qualquer cera líquida que impeça o contato iminente da carne.
Um mundo variado, de cores concordantes de mutações; um formato novo de futuro, palavras novas de xingamento, torturas quase inócuas que destroem o pouco-a-pouco, que mutilam o desgosto. Mudamos de olhos com pigmentos azuis, como Jesus na sua dor profundamente azul, peito aberto às mentiras e respirando com uma dificuldade quase insana.
Mudaram o fundo da piscina, consertando as rachaduras; e a terra que ruiu sobre as casas na última enchente mudou as paredes e os utensílios domésticos, misturou tudo, como lava absorvendo o humano. O fogo transformou em penugens cinzas todo o estofado de plástico, assim se foi a tv pro saco, o retrato do avô morto, retocado de ruge e tinta vermelha no contorno da boca se foi ao encontro de todas as coisas.
A rotação incessante da mudança das coisas foi feita de velocidade. E por não termos nos atirado às águas barrentas do tempo, por inépcia, por desilusão ou cretinice, só por isso não conseguimos nos fazer mudanças puras. Todo o distanciamento que imprimimos a cada fato a ser analisado, todos os tijolos pensados friamente e dispostos com a correção do exato, as arcas anti-diluvianas envernizadas sistematicamente, tapando o fundo frágil de nossa queda; todos os nomes que inventamos para as cores foram mudando.Eu, como uma morsa ou um boi, um líquen ou um fantasma, não me reconheço em nada. Mas isso não é nem um pouco novo, só o desejo de estar totalmente em silêncio, feito um ser pré-histórico, mais, como a evolução última do desejo mais preciso: ser uma pedra.