terça-feira, 16 de outubro de 2007

4.0 7

Não sei se o quadro que pintei era no todo que estava a beleza, ou se era ela que produzia uma luz tão clara que fazia do dia tão lindo. Meus olhos deviam estar preparados para o vento quase fresco da manhã, meu ânimo jogava para cima uma certa alegria que podia vir de um tudo, da viagem diária, do azul que, deitado como um lençol sobre nossas cabeças, fazia transparecer as cores, de toda a multidão sonolenta que caminhava lentamente e passava por mim.
Ela levava uma flor de pano no casaquinho leve de lã. Foi aquele colorido da flor que me chamou tanta atenção. Depois, seus cabelos pretos, os óculos por demais grandes que a tornavam enigmática e escondiam o que de mais lindo ela poderia ter. Óbvio, me ignorou, passou, e com ela um ar de novidade me foi invadindo. Há quanto tempo não me levantavam assim do chão?
Neste tempo lento em que eu enxergava tudo, na hora do dia cedo com o sol convidando para uma vida muito mais grandiosa na calmaria, no entender os gestos serenos de tudo quanto é natural e não-humano, ela andava firme, com pernas que eu queria esconder de minha lembrança; andava apressada, impossível no meu ritmo. Eu não podia segui-la, só pensar que a veria de novo, de novo com uma flor no casaco, que ela não tiraria, de novo com uma nova flor refeita de cores e de panos.
Eu queria que os dias ficassem assim na suspensão da altivez dela, perdido entre o escuro das lentes, descobrindo um horizonte que ela guardava no caminho entre os dois olhos escuros. Era a boca, o nariz, a orelha, o pequeno defeito no rosto que puxava de um lado o sorriso, o rolar o cigarro entre os dedos enquanto ficava ali, pensativa, deixando escorrer beleza. Tão altiva que não se podia dizer que era linda. Em mim tudo era silêncio, uma quietude que queria gritar. Mas eu não alcançava a voz certa, o tom, a placidez que abriria a flor do casaco de lã.
O que me restava era um pouco de desespero. Eu não podia continuar no mundo, não neste mundo onde o desejo não podia ser alimentado e que, por isso, se tornava ainda mais forte e necessário. Passava pelas padarias encobertas pela manhã, tomava uma vitamina, um pão com manteiga na chapa; e ela seguia o rumo do trabalho, esvoaçando um vestido estampado de cores leves. Ah! A quanta amargura a beleza nos condena, como ela nos faz estar entre detritos de nós mesmos, e tudo o que queremos é nos deitar a seu lado, quietos, como deuses que pudessem acariciar montanhas ou porções de oceanos.
Silenciosa, talvez ela tivesse um pedaço de vida a me emprestar por algumas horas. Mas como meu peito suportaria seu peso? Como meus olhos poderiam se aquietar? Como toda minha pele poderia evitar a luta, a guerra, as batalhas? E a minha gastrite, como a tornaria infeliz e insípida diante do que eu via e insistia em tocar! Mas estas são as trocas do mundo, senti-lo, por mais fraco que seja, nos releva a uma condição que é estar nos dois pontos do fio cuja tensão se fortalece dia a dia, vida a vida.
Minhas lembranças se impregnaram com tudo o que aquela flor de pano escondia. E eu respiro um mistério envolto em fumaça de cigarro, sinto no pulmão um respirar que tem pedaços dela, lâminas finas que me cortam os alvéolos e me trazem uma delícia pulsante. Dói. Mas quais as dores que já trago envolvidas no estômago que não me doem? Qual a vida repleta de sentido que não tenha lá intensos conflitos e que não possa suportar os arranhões na alma?

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

4.0 6

O que eu mais estranhei não foi propriamente o meu pai ter morrido. Ele estava lá em Fortaleza com seu pulmão arfando feito uma sanfona mais que usada. Judiou muito dele. Não havia panos molhados que dessem conta daquele cheiro forte de substâncias químicas queimadas. O enfisema, que ele chamava de fimose, já dera provas de sua força havia um bom tempo. Pega, tira ele do apartamento apertado e sem sol, tira dos mofos e das baratas, amontoa os livros, a coleção completa do Dostoievski em papel bíblia que se perdeu. Ele havia prometido para meu irmão e eu senti um ciúme desgraçado. Meu irmão nem terminara “O idiota” – nem terminaria, o livro está comigo até hoje – porque iria ler a obra completa? Televisão, duas geladeiras, fogão grande e uma sujeira desgraçada.
Há anos eu pensava que chegaria a notícia. Eu me afastava. E hoje me pergunto do que me afastava? O que me empurrava para longe dele? Talvez sua morte me afastasse mais do que sua vida repleta de sonhos, talvez a notícia inevitável me afastava de seus cabelos bem branquinhos, dos dentes pendurados no final da vida, silvando em algumas sílabas.
Ele foi enterrado em Arujá, aqui perto de São Paulo. Um campo aberto, alto, sem cruzes, tudo verde. O dia estava chuvoso, uma água fina caía e descaía, abria um azulzinho aqui, uma nuvem rala que se esgarçava dando a impressão de sumir. Foi tudo rápido. Pouca gente, pouca família.
Voltei para casa, passei numa locadora. Disse à garota que me atendeu que eu acabava de voltar do enterro. Ela ficou um pouco perplexa. Eu lá, escolhendo um filme. Nada dramático, algo mais leve, uma comédia à la Woody Allen me faria bem. Eu não sentia nada. Não sabia direito o que deveria sentir. Tempo chuvoso, filme de locadora, alguma comida na geladeira. Meu cachorro pulava em mim sem saber de nada e eu beijei suas orelhas muitas vezes.
Como eu disse, não estranhei a morte de meu pai. Estranhei foi o urubu que entrou na garagem de casa e de lá não saía por nada. Joguei água. Ele voltou. Espantei com a vassoura. Ele voltou. Deixei que ficasse. Empoleirou-se no canto de uma floreira de concreto. Não conseguia voar, precisava de abrigo até morrer, talvez. Estava doente, era visível. Todo urubu tem lá seu jeito desengonçado, meio manco, pulando, mas este tinha as penas ensebadas de doença. E não tinha o menor medo do cachorro, que chegava de mansinho e saía correndo assustado de um tipo de berro que o pássaro dava, rascante, gutural, única força que lhe sobrava.
No dia do enterro de meu pai, um urubu pousou em minha casa, dormiu a noite toda sob minha janela, doente das asas, filtrando alguma dor. Não entendi o recado de tanta insistência. Nunca um animal desconhecido havia sido tão solidário comigo.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

4.0 5

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Minha poesia favorita. Tudo era revestido de uma película de proteção. Ficar quieto, obediente, não falar o que não se devia aos adultos. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. De criança, a gente se virava, falando palavrões bem gordos, e corríamos em campos de futebol improvisados, no meio da poeira e do mato, com carrapichos grudados nas meias. Ficávamos horas – o que eram as horas? – tentando alcançar o córrego, cortando a pele em capim-gordura. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Heroísmos bem próximos, íntimos, como pular um muro alto ou fugir de um cachorro, roubar abacates e não olhar pra baixo. Eu tinha lá os meus medos. Medos de todos os alertas dados pelos meus poros. Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo. E íamos aos becos escuros, com carros estacionados no silêncio, gritar para assustar os namorados. Jurávamos ter visto uma felação. Um chupando o outro. Era assim que eu não conseguia imaginar como era possível, como se enfiava aquele troço no outro troço. Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu arrotava a arrogância de saber de tudo um pouco. Pelo primo mais velho. E não sabia nada. Meus deuses eram tão gentes normais que respondiam com grunhidos e me afastavam com as mãos. Na escola, havia os adultos mandando, vigiando o portão principal. Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, As mães diziam que podiam nos castigar fosse o caso de não aprendermos a nos comportar. Alguns professores mais velhos batiam nos nós dos dedos quando da desatenção nossa. Vestígios de algo que se acabaria num piscar. Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, A escola dos professores, o cheiro da merenda, leite em pó e pão e arroz doce. Quem ficava na fila? E era a fila dos menores? E crescíamos tanto em tão rápido tempo! E mais filas que separavam meninos e meninas. E elas riam tanto e eram altas e tinham a volúpia que eu nunca entendia. Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Depois, as aulas. Falar corretamente, calcular, pensar rápido, obedecer. A tarefa pronta para ir à lousa, giz branco, quando quando uma cor azul – que nunca escrevia bem por mais bela que fosse – um amarelo apagado, um vermelho roseado e fraco. Que tenho sofrido enxovalhos e calado, É preciso ter coragem na vida, nesta vida de meninas e meninos que gritam, que explodem seus corações em todos os segundos. Tínhamos que fazer direito. A exposição na frente de toda a sala nos revelava. Fraqueza, desistência, algum desespero que apontava o dedo ditando regras. Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Comportar-se, ser limpo, estes cadernos sujos de dedos sujos. A força ali era ser inteligente. A força no recreio era você ser simplesmente forte. Algum amigo mais ríspido, quieto e troncudo o protegeria. Ou lhe dariam um pedaço de lanche que sua mãe não podia fazer. Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, O menino cujo pai era bravo, diziam da pobreza que causa raiva sobre os filhos, de olhos sempre quase fechados por causa do cenho franzido. Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, E toda criança não seria então um pouco alegre? E era às vezes, mas nunca quando enxugava os olhos. Zagueiro de primeira, pelo corpo forte, as mãos abertas como um lavrador. Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Há presságios na vida, essa coisa de destino que começa a feder desde cedo. Meu amigo nem muito amigo, forte e sem pensar, o queixo duro, os lábios grossos como se lhes faltasse água, e poder ficar um pouco com a cabeça baixa diante da lousa, escura como um lago podre. Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Os olhos mirando o fora, sempre o ir-se de algum lugar. Para fora da possibilidade do soco; No meu calar de boca e no quieto furor, passivo e contido, do menino plantado de cara no verde musgo, abriu-se então o mundo na perversidade mais silenciosa. Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Não saber fazer, calcular, ler com as vírgulas. O que merece um homem-menino, de vez em quando, quando convier às crenças: homem ou menino. Olhar para as mãos de lavrador. Não sentir pena, ódio de não revidar o cuspe da vida. Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Via que a educação podia ser feita à força. Pá!!! Não há nada de mal levar um tapão na nuca, né não?!, amigo menino quase homem lavrador. Foi o que meu soluço pediu no momento. Fica assim estagnado... Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Não saia por aí do meu peito que você não é suspiro, é grito sem nenhuma vogal. Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Não há som. Como faz um ferro perfurando o crânio? Onomatopéias desnecessárias. Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... E eu pedia cá pra mim não chore, não chore. A boca dele tremia e era um cãozinho tão frágil no meio de olhos vendados, era aqueles passarinhos feios e depenados que caíam de um monte de palha que chamavam ninho. Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Seus olhos começaram a irrigar os lábios grossos e sedentos. Eu podia achar que eram rachados de sol, que rachavam de uma escassez de uma coisa que molha que não é líquida, que não se enxerga. Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; O professor mantinha um quê de respeito e derrota. Mantinha-se como um poste que ergue a mão e dá um tapa na nuca. Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! E havia uma história toda que eram formigas passeando e fazendo tuneizinhos no seu peito de professor. É preciso ser duro, ele diria se pudesse e não fossem tão frágeis suas retinas de cristal. Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quieto diante do problema de matemática. As mães diziam para dar corretivos corpóreos. Assim como uma chinelada macia elas queriam dizer? Não. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Podia ser o que considerassem, assinar um livro preto, ir para fora da sala, ficar parado no recreio. Mas a mão humana tem vontades próprias. Ó principes, meus irmãos, Diziam que podiam fazer as vezes de carrasco. No seu sangue, o professor sabia o que já tinha sido. Arre, estou farto de semideuses! E também eram coisas de destino dele que cheiravam muitas vezes a queimado. Os pêlos longos do braço, a assinatura veloz e potente que treinava por cima dos exercícios. Onde é que há gente no mundo? Em todo espaço e tempo ele se encontrava com o menino homem lavrador de lábios ressequidos e chacoalhava a cabeça. Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Não, não faço parte disso. É por acaso uma escolha, o tempo, a cidade, os filhos? Poderão as mulheres não os terem amado, E todos os sonhos... Por acaso eu me encontro aqui, com mão firme a guiar meninos e meninas, por acaso eu sei que a minha letra é bonita e minha assinatura é uma marca. Marco pois então sobre os exercícios. Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! Eu não podia ler os pensamentos. Um homem ereto, um menino cabisbaixo. Tudo vai passar. Água com açúcar, arrependimentos. Eu vou aprender. E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Aprender a me portar. Não precisa me bater. Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Vivo o bastante para querer tudo isso também, postes firmes, mãos na nuca, olhos de vidro. Se for preciso eu fujo. Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Tenho conseguido ser um homem. Fico feliz com minha poesia favorita. Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

* Os versos em itálico são a reprodução do “Poema em linha reta”, de Fernando Pessoa.