terça-feira, 19 de junho de 2007

Saga dentária 5

Em frente ao Mosteiro São Bento, fica sempre um homem, de joelhos calejados, pés tortos, sentado sobre as pernas cruzadas de modo estranho. Ele usa uma roupa suja como as calçadas e cumprimenta algumas pessoas. Como se fossem velhos conhecidos se encontrando no local de trabalho. Ali é seu local de trabalho. Sua função é ficar sentado e mostrar as feridas. Dizem que a vida assim é fácil. Eu duvido. Ele não pede dinheiro, não exige nada. Isso conforta um pouco. Não sei se isso é uma impressão da manhã, que deixa todos os corpos mais leves, já que as almas nem acordaram muito bem e não voltaram das paragens onde podem ter um mínimo de sossego.
Há olheiras; isso lá é verdade. Muitas olheiras. De noite mal dormida, de dia não terminado. A dra. Cecília tem um pique desgraçado, invejável. Vem sempre com um papo de que não pensa direito pela manhã tão cedo. Mas com toda aquela energia, a verdade é que fico mais tranqüilo. Seu piloto-automático está em ótima forma. O meu me ajuda em não pensar muito antes de abrir a boca. Pra qualquer coisa. O silêncio me domina. Converso, falo, mas ouço muito mais. Quando eu era criança, não me lembro dos dentistas serem tão prestativos e solidários ao medo que temos deles. A Cecília (ela é uma doutora, não posso me esquecer) conversa sobre assuntos engraçados, ri com o aparelho nos dentes e o que parecia terrível vai se aquietando. Mas meus músculos resistem, retesados num gesto involuntário. Uma teimosia que o corpo não renega. Fazer o quê? Já me aceitei há algum tempo; espero só que me tolerem.
As lojas estão quase todas ainda fechadas. Alguns comerciários aguardam nas portas frisadas de ferro. Uma precisa de balconista, com experiência. A espera da mulher com um casaco vermelho, tão cedo, talvez seja pelo emprego. Lembro do quentinho dos escritórios onde comecei minha vida de trabalhador. Uma sensação de que ninguém me vigiava. Ainda podia tomar um pouco dos sonhos que não terminavam, inventar mais um tanto da vida que vinha. Como o homem de gravata tomando conta do estacionamento. O café que faz fumaça, o olhar que é ponto desacordado no infinito, o cabelo engomado, tudo limpo como uma boca recém escovada.Sob o viaduto as barracas vão se animando, de ferros e lonas azuis, vão se transformando em tudo que é objeto. Depois os pés vão se confundindo. As roupas, os ombros, os joelhos, o terno preto do homem sem sapatos e só com as meias que encobrem a barra da calça. As dignidades vão se juntando. Ao meio-dia, o sol terá esquentado as moléculas e fundido tudo numa grande correria.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Saga dentária 4

Só consigo lembrar os nomes das ruas se passo com freqüência por elas e se, com a mesma freqüência, leio as placas. Na Florêncio de Abreu com a Ladeira Constituição (não vi nenhuma preposição “da”), um caminhão tenta fazer a curva para descê-la. Embaixo, parece uma espécie de mercado, mas sei que estou errado quanto a isso. O caminhão carrega um enorme container, destes de navio. As pessoas ficam olhando, desacelerando os passos. Uma mulher com o carro estacionado, destes com caçambas, vende café e bolos. Alguns se reúnem por ali, vendo o caminhão fazendo a curva. Umas letras em chinês impressas grandes no canto do vermelho-terra do container. Os bolos têm um aspecto agradável, lustrosos por cima. Não sinto o cheiro do café. Sinto o cheiro da manhã.
A cada dia o sono vai apertando meus olhos e me atrasando na cama. Acordar cedo é bom, mas dá um sono! A dra. Cecília disse que eu me acostumaria, que a cada dia ficaria menos nervoso, mais relaxado. Mas eu sou um doente mesmo. A cada dia me sinto mais nervoso. A intervenção é rápida, sem dor desta vez. O sol bate nas persianas. Uma janela deixa que vejamos o céu, que vai se tornando todo azul. As nuvens vermelhas, lindas, escorregadias como uma pincelada aleatória numa tela de linho, vão sumindo. Perco suas transformações. Aperto as mãos, os pés, suo. Tento bancar o homem, o macho, mas sei que essa coisa de saber agüentar a dor é com as mulheres. Quer dizer, sei por dizerem. Com o medo, a vida se perde um pouco. Sem o medo, torna-se totalmente vazia.
O Viaduto Santa Ifigênia é amarelo. Com gradeado de ferro. A impressão é que camadas líquidas de ferro foram sendo derramadas, dia a dia, engrossando as voltas amarelas, os meandros cobertos da fuligem escura de tudo quanto é fumaça. No final do viaduto, atravessando um conjunto de ruas que se encontram, há uma igreja. Parece feita de pedra, pichada por fora com letras de descasos, talvez revoltadas pela beleza incompreendida. Há avisos de dízimos, apelos feitos no computador e impressos num sulfite já um pouco surrado. Os santos são mais tímidos, cabeças baixas, roupas mais simples. Sinto a força da opressão no peito.
Volto para o viaduto. Fico olhando um pouco o rapaz com três tampinhas e uma bolinha preta que vai pedindo as apostas rapidamente. Presto atenção e acerto onde a bolinha está umas quatro vezes. Mas eu sei que ele é muito mais esperto e não aposto nada. O dinheiro está envolvido, mas não é o que me interessa.
A Praça da Sé me espera. Espera todos, todos os dias. Uma cúpula de um verde brônzeo se ergue por trás. Não gosto de parar assim à toa. Não enxergo direito por onde ela cresce. Sou um bicho e preciso aguardar os botes da escada rolante, do aperto de ombros. Os rostos não condizem com o fresco ventilar do dia.
É uma pena termos nos perdido tanto!

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Saga dentária 3

A sorte é que não está fazendo frio. O azar é que tem muita gente. Em São Paulo e no mundo. Sorte das pessoas e dos cachorros, que se estendem num lugar qualquer, rua ou calçada, iluminados. Gente, muita gente, e alguma tristeza. Talvez hoje seja apreensão. Um outro dia será tristeza. Quando se caminha, olha-se pra frente, destino apontado, olhos vendados e pés com gps. Mas quando se está no metrô e não se tem um livro e não dá mais pra ficar lendo os lembretes de compras de materiais e diplomas universitários, tem que se encarar os olhos cansados, a pele seca, as mãos apertadas entre os dedos, entre uma sacola ou três. Todos cansados do trabalho.
Nunca tive muita certeza do trabalho enobrecer alguém. Minha mãe dizia que até ser gari é digno. Mas confio mais no “colocar-se no seu devido lugar”. O poder que mantém os garis e os presidentes, os industriais e os mendigos, o dinheiro e a preguiça. A dignidade não está no trabalho, está no homem, na pessoa que a carrega. Nunca quis contrariar muito a minha mãe, mas, no silêncio, fico deste meu lado.
Fiquei confuso hoje, com tanta gente, logo cedinho, nas ruas. Metrô parado (uma greve que entra pelos intestinos dos pobres), carros liberados, o suor atrasado. E a pedra de Sísifo vai sendo arrastada e rolada, enquanto os deuses riem do filho bastardo e desobediente. Hoje quem me atendeu foi a dra. Cecília. Periodontista. Gengiva, limpeza e dá-lhe arrancar-me a alma em cada estocada e pingos de sangue. Essa coisa de ter dente ta me dando no saco. Dizem que já há vacina para a cárie. Mas e o dinheiro? E a Cecília? E eu nem posso me esconder do meu medo. É ultrassom, pazinhas de ferro, agulhas, sugadores, gazes e algodões. Mas há o dinheiro, e eu não posso nada contra ele. Não fosse a disposição destas mulheres!
Sorte têm os cachorros, mais bonitos que os santos assustadores pregados nas paredes. Defendem tudo o que podem e geralmente têm os dentes bem feitos e fortes. Não empurram pedra e discutem só o necessário. E tomam sol quando precisam do sol, e água quando precisam de água. Não reclamam das cáries e só ficam tristes quando estão presos. E pensar nos homens livres que não conseguem um puto de felicidade! E haja celulares de último tipo pra tapar com vento o vazio das conversas e distanciar as salivas e adormecer as palavras.Mas como pode ser feliz uma pessoa que tem dentes?

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Saga dentária 2

Nunca vou ter uma boca perfeita. A perfeição é um desejo. Só. Ela nunca chega. É como a tal da utopia, inalcansável. Mas necessária pro caminho. Também tem muita gente que liga o “que-se-fôda” e manda à merda a perfeição. Tudo vai mudando mesmo. Nesse roda, nesses giros, lá se vão as perfeições, sem saber pra onde.
Seis e meia da manhã, no inverno, apesar do calor que faz, o sol só apareceu de forma indireta, mudando as cores do céu, enviando uma ou outra ondinha de um morno que lembra a cama. Mas o dia lindo, mesmo com a presença narcótica do sono, faz a gente acordar. Pelo menos estar de olhos abertos com uma sensação de sonho.
A entrada do prédio onde fica o consultório odontológico é estreita. Tudo é estreito no Centro de São Paulo. E as paredes têm um tom acinzentado, como se houvesse sujeira nas ranhuras, nos rejuntes dos azulejos, nas bordinhas dos vidros onde fica aquela massinha para grudá-los. Tenho a impressão de quem provoca isso é a história.
Milhões delas, anos e anos delas. Impressionam, dão medo. Penso que a história é suja. Mas também acho a sujeira bela, assim como o medo. Essa coisa de ser limpinho é neurose do demasiado humano, é um medo da morte, dos vermes. Mas tudo isso não é também a vida?
A Clau perfura meu dente. Ela é bonita e isso me tranqüiliza. Não sinto nada por causa da anestesia. Ela enfia uns ferrinhos até o fundo, procurando meu cérebro. Me disseram que eu tenho a raiz do dente muito profunda. Eu penso nas raízes e em Araraquara. O que adianta ter dentes de raízes profundas se me tornei flutuante? Tão perdido.
Não doeu nada a intervenção da Clau. Sinto vontade de vomitar ao tirar a radiografia. Uma, duas, cinco vezes. Acho que ela desistiu. Tomara que não sinta raiva de mim. Uma dentista como inimiga é um horror.
Saio pelas ruas do Centro. Já tá todo lotado. Os camelôs se preparam. DVDs no chão, jogos de azar, grana na mão, carrinhos de recolher entulhos e cachorros protegendo os donos da rua. Alguns dormem no chão, sob cobertores. Debaixo de um, uma garota, tatuada, bonita, ao lado de um garoto que eu não vejo o rosto, só as pernas lisas como uma criança gigantesca.
E depois tem as igrejas.

Saga dentária 1

Amanhã começa minha saga em busca da boca perfeita, como o cálice sagrado. Terei que ser essa espécie de herói de nada e de ninguém, percorrendo as sujeiras do Centro de São Paulo, com gatos escondidos em sacos de lixo pretos e talvez umas criancinhas encolhidas entre um degrau ou outro, ou mesmo na sarjeta, de onde escorre um fio fino e escuro de asfalto, chorume, plásticos - ali, com certeza, tem mijo de muita gente e animal. Mas o cheiro é vigiado pelo enorme São Bento de barbas severas e olhar ameaçador. Fico olhando pensando que ele é Netuno, com um tridente na mão. A igreja é bela porque assusta; talvez seja, por isso, sublime. Suscita nosso complexo de Estocolmo. Deus, o carrasco torturador.Mas a dentista acorda com o sol. No consultório, a luz amarela do dia ilumina as mulheres de branco, limpas, com toucas translúcidas e sorrisos. Como é bom sorriso em consultórios dentários, um contraste com a aceleração da broca de diamante, com jatos de ar e água, e luzes azuis que esquentam e cheiro de queimado e flúor. São Bento me conforta. A surra iminente que me prepara, depois talvez da morte. Sei que doerá mais que o dente e carregarei uma eternidade, sob aquele olhar, a enorme pedra deixada por Sísifo.Depois eu saio à rua, lá pelas 8 horas. O sol vai estar baixo e o vento virgem e friozinho vai me dar mais vida. Sei que vou olhar cada canto das ruas movimentadas, um pouco os rostos dessa mesma gente que carrega a mesma pedra.Amanhã vai ser um dia daqueles. Vou esperar o morno conforto do tempo passado na cadeira de boca aberta. Depois eu pego o metrô e vou trabalhar.