quarta-feira, 3 de outubro de 2007

4.0 6

O que eu mais estranhei não foi propriamente o meu pai ter morrido. Ele estava lá em Fortaleza com seu pulmão arfando feito uma sanfona mais que usada. Judiou muito dele. Não havia panos molhados que dessem conta daquele cheiro forte de substâncias químicas queimadas. O enfisema, que ele chamava de fimose, já dera provas de sua força havia um bom tempo. Pega, tira ele do apartamento apertado e sem sol, tira dos mofos e das baratas, amontoa os livros, a coleção completa do Dostoievski em papel bíblia que se perdeu. Ele havia prometido para meu irmão e eu senti um ciúme desgraçado. Meu irmão nem terminara “O idiota” – nem terminaria, o livro está comigo até hoje – porque iria ler a obra completa? Televisão, duas geladeiras, fogão grande e uma sujeira desgraçada.
Há anos eu pensava que chegaria a notícia. Eu me afastava. E hoje me pergunto do que me afastava? O que me empurrava para longe dele? Talvez sua morte me afastasse mais do que sua vida repleta de sonhos, talvez a notícia inevitável me afastava de seus cabelos bem branquinhos, dos dentes pendurados no final da vida, silvando em algumas sílabas.
Ele foi enterrado em Arujá, aqui perto de São Paulo. Um campo aberto, alto, sem cruzes, tudo verde. O dia estava chuvoso, uma água fina caía e descaía, abria um azulzinho aqui, uma nuvem rala que se esgarçava dando a impressão de sumir. Foi tudo rápido. Pouca gente, pouca família.
Voltei para casa, passei numa locadora. Disse à garota que me atendeu que eu acabava de voltar do enterro. Ela ficou um pouco perplexa. Eu lá, escolhendo um filme. Nada dramático, algo mais leve, uma comédia à la Woody Allen me faria bem. Eu não sentia nada. Não sabia direito o que deveria sentir. Tempo chuvoso, filme de locadora, alguma comida na geladeira. Meu cachorro pulava em mim sem saber de nada e eu beijei suas orelhas muitas vezes.
Como eu disse, não estranhei a morte de meu pai. Estranhei foi o urubu que entrou na garagem de casa e de lá não saía por nada. Joguei água. Ele voltou. Espantei com a vassoura. Ele voltou. Deixei que ficasse. Empoleirou-se no canto de uma floreira de concreto. Não conseguia voar, precisava de abrigo até morrer, talvez. Estava doente, era visível. Todo urubu tem lá seu jeito desengonçado, meio manco, pulando, mas este tinha as penas ensebadas de doença. E não tinha o menor medo do cachorro, que chegava de mansinho e saía correndo assustado de um tipo de berro que o pássaro dava, rascante, gutural, única força que lhe sobrava.
No dia do enterro de meu pai, um urubu pousou em minha casa, dormiu a noite toda sob minha janela, doente das asas, filtrando alguma dor. Não entendi o recado de tanta insistência. Nunca um animal desconhecido havia sido tão solidário comigo.

Um comentário:

Isis vesuviana disse...

Troglodita querido,
amei esse texto. Não sei se posso chamá-lo de crônica. Mas você está juntinho com o Lobo Antunes nas crônicas. Acho que deve investir mais no gênero.
Foi feito pra você e você pra ele.
Fiquei emocionada com o teu texto.
Teu pai foi um homem sensível e especial. Ah.......Dostoievski.
Ele deve estar feliz por ter um filho como você, acredite.
Muitas vezes somente compreendemos as pessoas, suas emoções e suas razões, ou por vezes, somente sentimos com o coração, após a grande viagem para o Infinito.
Muito lindo.
Que bom ter você como amigo.
beijos
Isis Vesuviana.