Em frente ao Mosteiro São Bento, fica sempre um homem, de joelhos calejados, pés tortos, sentado sobre as pernas cruzadas de modo estranho. Ele usa uma roupa suja como as calçadas e cumprimenta algumas pessoas. Como se fossem velhos conhecidos se encontrando no local de trabalho. Ali é seu local de trabalho. Sua função é ficar sentado e mostrar as feridas. Dizem que a vida assim é fácil. Eu duvido. Ele não pede dinheiro, não exige nada. Isso conforta um pouco. Não sei se isso é uma impressão da manhã, que deixa todos os corpos mais leves, já que as almas nem acordaram muito bem e não voltaram das paragens onde podem ter um mínimo de sossego.
Há olheiras; isso lá é verdade. Muitas olheiras. De noite mal dormida, de dia não terminado. A dra. Cecília tem um pique desgraçado, invejável. Vem sempre com um papo de que não pensa direito pela manhã tão cedo. Mas com toda aquela energia, a verdade é que fico mais tranqüilo. Seu piloto-automático está em ótima forma. O meu me ajuda em não pensar muito antes de abrir a boca. Pra qualquer coisa. O silêncio me domina. Converso, falo, mas ouço muito mais. Quando eu era criança, não me lembro dos dentistas serem tão prestativos e solidários ao medo que temos deles. A Cecília (ela é uma doutora, não posso me esquecer) conversa sobre assuntos engraçados, ri com o aparelho nos dentes e o que parecia terrível vai se aquietando. Mas meus músculos resistem, retesados num gesto involuntário. Uma teimosia que o corpo não renega. Fazer o quê? Já me aceitei há algum tempo; espero só que me tolerem.
As lojas estão quase todas ainda fechadas. Alguns comerciários aguardam nas portas frisadas de ferro. Uma precisa de balconista, com experiência. A espera da mulher com um casaco vermelho, tão cedo, talvez seja pelo emprego. Lembro do quentinho dos escritórios onde comecei minha vida de trabalhador. Uma sensação de que ninguém me vigiava. Ainda podia tomar um pouco dos sonhos que não terminavam, inventar mais um tanto da vida que vinha. Como o homem de gravata tomando conta do estacionamento. O café que faz fumaça, o olhar que é ponto desacordado no infinito, o cabelo engomado, tudo limpo como uma boca recém escovada.Sob o viaduto as barracas vão se animando, de ferros e lonas azuis, vão se transformando em tudo que é objeto. Depois os pés vão se confundindo. As roupas, os ombros, os joelhos, o terno preto do homem sem sapatos e só com as meias que encobrem a barra da calça. As dignidades vão se juntando. Ao meio-dia, o sol terá esquentado as moléculas e fundido tudo numa grande correria.
terça-feira, 19 de junho de 2007
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2 comentários:
Hei Man, o tempo está lapidando cada vez mais tuas palavras, está casa vez mais te ajustando aos horários desses relógios metropolitanos.
Teu blog que supostamente iria adormecer, é o que está mais acordado e com muita qualidade literária.
Abraços.
RPG
Gostei de rever sensações nas tuas palavras, nas tuas experiências. Já os dentistas, estes me dão arrepios ... bom, não conheço a Cecília ...
Saudades,
Fernanda.
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