Não sei se o quadro que pintei era no todo que estava a beleza, ou se era ela que produzia uma luz tão clara que fazia do dia tão lindo. Meus olhos deviam estar preparados para o vento quase fresco da manhã, meu ânimo jogava para cima uma certa alegria que podia vir de um tudo, da viagem diária, do azul que, deitado como um lençol sobre nossas cabeças, fazia transparecer as cores, de toda a multidão sonolenta que caminhava lentamente e passava por mim.
Ela levava uma flor de pano no casaquinho leve de lã. Foi aquele colorido da flor que me chamou tanta atenção. Depois, seus cabelos pretos, os óculos por demais grandes que a tornavam enigmática e escondiam o que de mais lindo ela poderia ter. Óbvio, me ignorou, passou, e com ela um ar de novidade me foi invadindo. Há quanto tempo não me levantavam assim do chão?
Neste tempo lento em que eu enxergava tudo, na hora do dia cedo com o sol convidando para uma vida muito mais grandiosa na calmaria, no entender os gestos serenos de tudo quanto é natural e não-humano, ela andava firme, com pernas que eu queria esconder de minha lembrança; andava apressada, impossível no meu ritmo. Eu não podia segui-la, só pensar que a veria de novo, de novo com uma flor no casaco, que ela não tiraria, de novo com uma nova flor refeita de cores e de panos.
Eu queria que os dias ficassem assim na suspensão da altivez dela, perdido entre o escuro das lentes, descobrindo um horizonte que ela guardava no caminho entre os dois olhos escuros. Era a boca, o nariz, a orelha, o pequeno defeito no rosto que puxava de um lado o sorriso, o rolar o cigarro entre os dedos enquanto ficava ali, pensativa, deixando escorrer beleza. Tão altiva que não se podia dizer que era linda. Em mim tudo era silêncio, uma quietude que queria gritar. Mas eu não alcançava a voz certa, o tom, a placidez que abriria a flor do casaco de lã.
O que me restava era um pouco de desespero. Eu não podia continuar no mundo, não neste mundo onde o desejo não podia ser alimentado e que, por isso, se tornava ainda mais forte e necessário. Passava pelas padarias encobertas pela manhã, tomava uma vitamina, um pão com manteiga na chapa; e ela seguia o rumo do trabalho, esvoaçando um vestido estampado de cores leves. Ah! A quanta amargura a beleza nos condena, como ela nos faz estar entre detritos de nós mesmos, e tudo o que queremos é nos deitar a seu lado, quietos, como deuses que pudessem acariciar montanhas ou porções de oceanos.
Silenciosa, talvez ela tivesse um pedaço de vida a me emprestar por algumas horas. Mas como meu peito suportaria seu peso? Como meus olhos poderiam se aquietar? Como toda minha pele poderia evitar a luta, a guerra, as batalhas? E a minha gastrite, como a tornaria infeliz e insípida diante do que eu via e insistia em tocar! Mas estas são as trocas do mundo, senti-lo, por mais fraco que seja, nos releva a uma condição que é estar nos dois pontos do fio cuja tensão se fortalece dia a dia, vida a vida.
Minhas lembranças se impregnaram com tudo o que aquela flor de pano escondia. E eu respiro um mistério envolto em fumaça de cigarro, sinto no pulmão um respirar que tem pedaços dela, lâminas finas que me cortam os alvéolos e me trazem uma delícia pulsante. Dói. Mas quais as dores que já trago envolvidas no estômago que não me doem? Qual a vida repleta de sentido que não tenha lá intensos conflitos e que não possa suportar os arranhões na alma?
terça-feira, 16 de outubro de 2007
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2 comentários:
leio e releio...é lindo!
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