segunda-feira, 17 de setembro de 2007

4.0 4

Foi quando o mundo me parecia completo. O sexo não era algo para a carne, alimentava mais que isso em mim. O desejo se manifestava em situações grandiosas, sublimes, ser visto como um homem importante, pelas idéias, principalmente. Eu não era nem um pouco ambicioso, o que carrego até hoje e que me anuncia uma vasta derrota a ser amargada mais tarde, quando tudo não passar de miragens que se formaram para eu continuar vivo.
Até à igreja eu ia para agradar minha pequena namorada. Ela já tinha seios formados, que no meu parecer de agora deviam ser grandes e lindos. Éramos adolescentes; eu, dois anos mais velho; ela, com corpo já de mulher. Lembro dos homens olhando-a com fome. Ela fazia sucesso na rua onde morava e eu era o cara que pegava a menina mais gostosa do bairro. Mas isso eu só vim saber mais tarde, quando já não era um adolescente.
Entrava na igreja para não ficar muito longe dela. Sentia-me mal, com freqüência, naquela construção moderna anos 70, redonda... Só me lembro que era redonda a igreja. Não me lembro dos jesuses, dos santos, do sangue, do terror sendo amargado na cruz com vinagre e lanças pontiagudas. Não tinha a demonstração da piedade que os santos têm nas igrejas mais convencionais, escuras e de um cheiro secular. Não me lembro de quadros nem de púlpito. O padre pregava a moral cristã anti-sexo. Eu passava mal.
Ela me dava um seio para eu acariciar. O pecado se mostrava como um monstro maravilhoso no qual estava inclinado a deitar minha cabeça e me consolar. Um dia com um seio numa das mãos, numa rua arborizada à noite, nas sombras da devassidão pueril. Nem sei o quanto eu tinha de porra nutrida para inundá-la, nem me lembro de ficar de pau duro nestas horas. Era como uma religião que eu temia e adorava, que ora me impulsionava para frente, para dentro dela – eu tinha que estar dentro dela, com meu pinto, com seus líquidos, sua pele que pulsava esticada e ficava transparente com veinhas azuladas no contorno do bico –, ora me derrubava com a razão, com meus estudos, com minha educação. Adoeci.
E permaneci doente até o próximo pegar nos seios dela, que me oferecia sem pudor, como um pecado necessário. Havia a aura da religiosidade esmagando meu cérebro, o que estava certo e errado por séculos não podia se mostrar tão assim indiferente nas calçadas por onde eu andava com ela e queria porque queria enfiar minha mão na blusa, passar o sutiã, encontrar quentinho aquele monte de carne macia e dura, a pele frágil dos bicos como se fossem lábios sensíveis e que eu beijaria, se ela deixasse, e que eu esmagaria com as pontas dos dedos ou arrancaria com minha boca. Se ela deixasse.
Até eu vê-la saindo de casa dentro do carro de um cara bem mais velho. E eu passei a acreditar nas besteiras vigentes da economia, da sociedade, tudo porque eu não tinha um carro, mas uma bicicleta da qual nem me lembro a cor.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

4.0 3

Quando eu abri, o porta-luvas estava cheio de cocaína.
Meu pai contava as histórias. Eu ouvia de olhos assustados, principalmente essas das aventuras que ele provavelmente aumentava. Como todo contador de histórias, sonhador, ele ia pela resposta do olhar de quem ouvia. Cada vez era diferente. Às vezes esquecia que havia contado alguma coisa e dizia que nunca havia passado por aquilo.
Os caras tiraram a gente do fusquinha. Ficamos com a metralhadora na cabeça, enquanto um já estava abrindo o porta-luvas.
Eu acreditava em tudo. Porque a crença tem desses mistérios. Também gostava das poesias que ele declamava. Navio Negreiro, I Juca Pirama, umas de um tal Judas Isgorogota.
É um pseudônimo.
Eu pedia que me falasse de uma que tinha um cara que saía de casa com o sol ainda se levantando. Ele ia conversando com o sol e lhe pedindo que dissesse às pessoas porque havia partido. Dizia à mãe, ao pai, aos amigos, e quando chegava na noiva que deixava, ele pedia só para dizer que estava bem. Aquilo me apertava. Sentia a falta que carregava, o silêncio que ia junto com ele. Eu pensava que o amor era aquilo mesmo, aquelas coisas que não combinavam, as palavras que nunca iriam ser ditas, os gestos que atrapalhavam toda a manifestação do amor, a perda que ficaria como uma marca nas ruas por onde nunca caminharíamos.
A gente tava olhando pra baixo do viaduto. Eu pensava “daqui eu caio lá embaixo. Eles nem precisam se preocupar. Uma bala na cabeça e eu me estatelo no asfalto”. Foi ali no Viaduto do Chá.
Nas histórias de meu pai eu nem sentia os tempos de repressão política. A polícia era a polícia, e os que estavam presos eram presos, não pensava em bandidos, mas em algo que haviam feito de mal. Essas coisas não me atingiam. Se me diziam que eu não podia falar certa coisa, eu não falava. Minha mãe pedia para não dizer palavrões porque atraía espíritos ruins. Eu não dizia. Não comer tanto doce na festa de aniversário. Eu não comia. Não fazer feio, respeitar os mais velhos, me comportar na sala de aula, me levantar quando um professor entrava. Tudo perfeito para um perfeito paumandado. E eu cresci assim, como um paumandado. Acreditando nas histórias todas que me contavam, nas estruturas todas que eu teria que sustentar. Os mais velhos, os patrões, os professores. Nasci em meio a um tempo sujo e negro, um tempo de rebeliões, revoluções. Me tranquei na quietude da obediência. Fui um filho de minha terra destes bem adestrados.
Aí eu pensei “É agora que esses filhodasputa nos matam”. O soldado tava abrindo o porta-luvas. Pedi licença. “Põe essa mão na cabeça, põe essa mão na cabeça”. Os caras gritaram comigo porque eu estava levando a mão ao bolso do paletó. Eu precisava mostrar que a gente era jornalista, tirar minha identificação e mostrar pra eles. Eu ia morrer mesmo. “Péra lá, péra lá! Eu só quero mostrar uma coisa. Olha” eles viram que eu pegava o documento. O soldado com a mão no porta-luvas cheio de cocaína do fusquinha. Eles viram que a gente era do Estadão. O capitão mandou que o soldado esperasse um pouco. “Cês tão brincando com a gente? Por que fugiram, caralho? Sabia que podiam ter morrido? Cês tão loucos? Vai, vai, vão pra casa. Mas vão com calma”.
Lógico, meu pai estava ali, contando mais uma história. Não havia morrido, não havia se estatelado no chão embaixo do Viaduto do Chá com uma bala na cabeça. Tudo não tinha passado de uma história de aventura que eu adorava. Todas as histórias me fascinavam e a vida... ia assim, meio de lado, passando ao longe das coisas físicas, ficando nos versos lindos de amor, no heroísmo das invenções.
“Porra, Meninão! Tá louco? Por que essa merda toda aí? Por que cê correu da polícia?” E o Meninão ria. O Meninão só ria.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

4.0 2

Vez ou outra minha mãe nos levava ao dentista. Saíamos de Santo Amaro, da Vila Zelinda, e pegávamos um ônibus até o Centro. Meu pai já trabalhava no Estadão e num prédio cheio de repartições ficava o dentista. Eu não gostava nem um pouco daquilo. O barulho, o cheiro de tinta, as pessoas maiores que eu. Me sentia oprimido. Como se estivesse nestes fossos escuros que via nas ruas, ao lado de prédios; o que era para ser uma espécie de espelho d’água ficava lá, largado aos mosquitos, à sujeira mais suja dos que sujavam tudo, águas cercadas de gradinhas robustas e enferrujadas, e sujas.
Quando acabava a tortura do dentista – pode ser que nem fosse tanto, não me lembro direito se ganhávamos algum doce (santa incoerência, bela) – vinha a melhor parte. Minha mãe nos conduzia até um bar qualquer onde se vendiam coxinhas cremosas. Eram coxas de galinha com uma massa cremosa de farinha em volta. Era um presente pelos momentos raros de irmos ao Centro, ao dentista. Eu me enchia de gordura e segurava a mão de minha mãe. Uma imagem da qual não me lembro mas que invento com meu corpo. É ele quem me diz “era assim, era assim”. Minha mãe bem mais nova, de vestido (quais seriam as cores, os tecidos, as estampas? Eu não me lembro), esperando na sala ao lado.
Hoje eu penso que com cinco filhos pra criar ela vivia meio triste e só. Às vezes brigava com a gente numa impaciência de vida, pensasse se seria isso mesmo o que estava predestinado, pensasse em destino e resignação, no meu pai sumido por dias, meses, no meu pai bebendo a cerveja, fumando os cigarros pela casa. Ela colocava pano úmido nas frestas das portas para que a fumaça não nos atingisse. Mas eu gostava do cheiro da fumaça morta, do cheiro que o corpo do meu pai deixava no quarto. Eu nunca me perguntava porque meu pai dormia numa cama qualquer, porque ele chegava quando a gente já se levantava, porque da sua boca grossa não vinha o cheiro das salivas mortas, mas sim o cheiro que ficava nos cômodos, de bebida amanhecida, cigarro amanhecido, sonhos amanhecidos.
E por estar sempre perto, o cheiro de minha mãe estava sempre em mim. Eu não sentia que pudesse ser um outro odor, estrangeiro feito o do meu pai, eu não pensava que ela sofria. Nem quando nos pegou (eu e meu irmão mais novo) pelas mãos e nos levou até a imobiliária. Talvez ela tivesse chorado quando o homem grande que a olhava com ternura disse que não dava mais para segurar o aluguel. Nove meses de atraso. Isso eu me lembro. Tudo acima de mim, os diálogos, os olhos marejados, a calvície do homem, a alça do vestido de minha mãe, nove meses de atraso de aluguel.Meu coração só conhecia o futuro e eu o apertava entre as costelas, mirrado, medroso. Eu penso que ela poderia ficar um pouco triste com tanto filho pra criar, com tanto marido ausente, tudo misturado, como a vida, como fosse possível rir e chorar num só ponto do dia, num só ponto de passado e do presente que ia ia ia ia...

terça-feira, 4 de setembro de 2007

4.0

Eu me lembro de algumas coisas distorcidas. O sol limpo da tarde, uma moça que nos acompanhava pelas ruas, talvez zombando da gente pequena que éramos, talvez guardando com sinceridade alguma integridade infantil que se soltava toda vez que tirávamos as mãos das dela ou quando eu corria covarde de um lado pro outro sem me afastar.
As casas ficavam fechadas pelo calor. Acho que as crianças de colo dormiam nestas horas de começo de tarde. Focos de fumaça se levantavam aqui e ali num terreno baldio. Queimavam lixo, papel higiênico usado, plásticos, tudo que tivesse sido jogado fora. Minha tia tinha um quintal grande, mal tratado, onde eu assassinava folhas e formigas e depois as enterrava, chorando, pensando na eternidade delas, na minha, na minha vida pouca guiada por espíritos de toda ordem. Podia fazer cruzes de palitinhos de fósforo (o mesmo fósforo com o qual eu queimava as formigas, os mesmos palitos com que eu furava as folhas).
Esse cheiro de queimado está em mim até hoje. Não adianta afastar o nariz ou mudar de rua, ele queima e solta as fuligens, como as canas cortadas em labaredas gigantescas. Eu pegava a bicicleta e seguia por estes cheiros, o de laranja também, nos finais de tarde de verão. Morno, era um cheiro que impregnava toda a cidade. A lua surgia por trás da fábrica de suco de laranja, muitas vezes tão enorme que assustava. Eu percebia que gritava por dentro, pelo sublime, pelo medo de tanta maravilha. Seguia em direção da fábrica, da lua, do cheiro de laranja. Chegava até o córrego sujo, mas onde, ainda, por diversão e ignorância, se pescavam lambaris desnutridos.
Na casa de minha tia, neste mesmo quintal descuidado, havia também um galinheiro. Ela torcia o pescoço de uma ou outra quando íamos almoçar no domingo. Eu não gostava muito, a carne era dura e parecia nadar num molho oleoso de tomate e especiarias. A avó da minha prima, uma velha senhora de uns duzentos anos, com o andar vagaroso, as pernas abertas como se tivesse andado a cavalo a vida inteira, feridas nos braços, o cenho constantemente franzido, dormia no sofá da sala. Não podíamos fazer um barulhinho sequer, por medo mais do que respeito. Os velhos da minha infância eram carrancudos e impacientes e nunca me ensinaram nada.
Eu ia pro quintal, pro meio dos pés de mamona, matar formigas e folhas. Depois eu chorava um prenúncio de começo de vida. Foram os melhores momentos e no entanto eu compartilhava com o silêncio minhas delícias. Não era preciso dizer palavras, só obedecer aos mais velhos e esperar que chegasse o momento.
Acho que chegou.