terça-feira, 4 de setembro de 2007

4.0

Eu me lembro de algumas coisas distorcidas. O sol limpo da tarde, uma moça que nos acompanhava pelas ruas, talvez zombando da gente pequena que éramos, talvez guardando com sinceridade alguma integridade infantil que se soltava toda vez que tirávamos as mãos das dela ou quando eu corria covarde de um lado pro outro sem me afastar.
As casas ficavam fechadas pelo calor. Acho que as crianças de colo dormiam nestas horas de começo de tarde. Focos de fumaça se levantavam aqui e ali num terreno baldio. Queimavam lixo, papel higiênico usado, plásticos, tudo que tivesse sido jogado fora. Minha tia tinha um quintal grande, mal tratado, onde eu assassinava folhas e formigas e depois as enterrava, chorando, pensando na eternidade delas, na minha, na minha vida pouca guiada por espíritos de toda ordem. Podia fazer cruzes de palitinhos de fósforo (o mesmo fósforo com o qual eu queimava as formigas, os mesmos palitos com que eu furava as folhas).
Esse cheiro de queimado está em mim até hoje. Não adianta afastar o nariz ou mudar de rua, ele queima e solta as fuligens, como as canas cortadas em labaredas gigantescas. Eu pegava a bicicleta e seguia por estes cheiros, o de laranja também, nos finais de tarde de verão. Morno, era um cheiro que impregnava toda a cidade. A lua surgia por trás da fábrica de suco de laranja, muitas vezes tão enorme que assustava. Eu percebia que gritava por dentro, pelo sublime, pelo medo de tanta maravilha. Seguia em direção da fábrica, da lua, do cheiro de laranja. Chegava até o córrego sujo, mas onde, ainda, por diversão e ignorância, se pescavam lambaris desnutridos.
Na casa de minha tia, neste mesmo quintal descuidado, havia também um galinheiro. Ela torcia o pescoço de uma ou outra quando íamos almoçar no domingo. Eu não gostava muito, a carne era dura e parecia nadar num molho oleoso de tomate e especiarias. A avó da minha prima, uma velha senhora de uns duzentos anos, com o andar vagaroso, as pernas abertas como se tivesse andado a cavalo a vida inteira, feridas nos braços, o cenho constantemente franzido, dormia no sofá da sala. Não podíamos fazer um barulhinho sequer, por medo mais do que respeito. Os velhos da minha infância eram carrancudos e impacientes e nunca me ensinaram nada.
Eu ia pro quintal, pro meio dos pés de mamona, matar formigas e folhas. Depois eu chorava um prenúncio de começo de vida. Foram os melhores momentos e no entanto eu compartilhava com o silêncio minhas delícias. Não era preciso dizer palavras, só obedecer aos mais velhos e esperar que chegasse o momento.
Acho que chegou.

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