Vez ou outra minha mãe nos levava ao dentista. Saíamos de Santo Amaro, da Vila Zelinda, e pegávamos um ônibus até o Centro. Meu pai já trabalhava no Estadão e num prédio cheio de repartições ficava o dentista. Eu não gostava nem um pouco daquilo. O barulho, o cheiro de tinta, as pessoas maiores que eu. Me sentia oprimido. Como se estivesse nestes fossos escuros que via nas ruas, ao lado de prédios; o que era para ser uma espécie de espelho d’água ficava lá, largado aos mosquitos, à sujeira mais suja dos que sujavam tudo, águas cercadas de gradinhas robustas e enferrujadas, e sujas.
Quando acabava a tortura do dentista – pode ser que nem fosse tanto, não me lembro direito se ganhávamos algum doce (santa incoerência, bela) – vinha a melhor parte. Minha mãe nos conduzia até um bar qualquer onde se vendiam coxinhas cremosas. Eram coxas de galinha com uma massa cremosa de farinha em volta. Era um presente pelos momentos raros de irmos ao Centro, ao dentista. Eu me enchia de gordura e segurava a mão de minha mãe. Uma imagem da qual não me lembro mas que invento com meu corpo. É ele quem me diz “era assim, era assim”. Minha mãe bem mais nova, de vestido (quais seriam as cores, os tecidos, as estampas? Eu não me lembro), esperando na sala ao lado.
Hoje eu penso que com cinco filhos pra criar ela vivia meio triste e só. Às vezes brigava com a gente numa impaciência de vida, pensasse se seria isso mesmo o que estava predestinado, pensasse em destino e resignação, no meu pai sumido por dias, meses, no meu pai bebendo a cerveja, fumando os cigarros pela casa. Ela colocava pano úmido nas frestas das portas para que a fumaça não nos atingisse. Mas eu gostava do cheiro da fumaça morta, do cheiro que o corpo do meu pai deixava no quarto. Eu nunca me perguntava porque meu pai dormia numa cama qualquer, porque ele chegava quando a gente já se levantava, porque da sua boca grossa não vinha o cheiro das salivas mortas, mas sim o cheiro que ficava nos cômodos, de bebida amanhecida, cigarro amanhecido, sonhos amanhecidos.
E por estar sempre perto, o cheiro de minha mãe estava sempre em mim. Eu não sentia que pudesse ser um outro odor, estrangeiro feito o do meu pai, eu não pensava que ela sofria. Nem quando nos pegou (eu e meu irmão mais novo) pelas mãos e nos levou até a imobiliária. Talvez ela tivesse chorado quando o homem grande que a olhava com ternura disse que não dava mais para segurar o aluguel. Nove meses de atraso. Isso eu me lembro. Tudo acima de mim, os diálogos, os olhos marejados, a calvície do homem, a alça do vestido de minha mãe, nove meses de atraso de aluguel.Meu coração só conhecia o futuro e eu o apertava entre as costelas, mirrado, medroso. Eu penso que ela poderia ficar um pouco triste com tanto filho pra criar, com tanto marido ausente, tudo misturado, como a vida, como fosse possível rir e chorar num só ponto do dia, num só ponto de passado e do presente que ia ia ia ia...
quarta-feira, 5 de setembro de 2007
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