quinta-feira, 13 de setembro de 2007

4.0 3

Quando eu abri, o porta-luvas estava cheio de cocaína.
Meu pai contava as histórias. Eu ouvia de olhos assustados, principalmente essas das aventuras que ele provavelmente aumentava. Como todo contador de histórias, sonhador, ele ia pela resposta do olhar de quem ouvia. Cada vez era diferente. Às vezes esquecia que havia contado alguma coisa e dizia que nunca havia passado por aquilo.
Os caras tiraram a gente do fusquinha. Ficamos com a metralhadora na cabeça, enquanto um já estava abrindo o porta-luvas.
Eu acreditava em tudo. Porque a crença tem desses mistérios. Também gostava das poesias que ele declamava. Navio Negreiro, I Juca Pirama, umas de um tal Judas Isgorogota.
É um pseudônimo.
Eu pedia que me falasse de uma que tinha um cara que saía de casa com o sol ainda se levantando. Ele ia conversando com o sol e lhe pedindo que dissesse às pessoas porque havia partido. Dizia à mãe, ao pai, aos amigos, e quando chegava na noiva que deixava, ele pedia só para dizer que estava bem. Aquilo me apertava. Sentia a falta que carregava, o silêncio que ia junto com ele. Eu pensava que o amor era aquilo mesmo, aquelas coisas que não combinavam, as palavras que nunca iriam ser ditas, os gestos que atrapalhavam toda a manifestação do amor, a perda que ficaria como uma marca nas ruas por onde nunca caminharíamos.
A gente tava olhando pra baixo do viaduto. Eu pensava “daqui eu caio lá embaixo. Eles nem precisam se preocupar. Uma bala na cabeça e eu me estatelo no asfalto”. Foi ali no Viaduto do Chá.
Nas histórias de meu pai eu nem sentia os tempos de repressão política. A polícia era a polícia, e os que estavam presos eram presos, não pensava em bandidos, mas em algo que haviam feito de mal. Essas coisas não me atingiam. Se me diziam que eu não podia falar certa coisa, eu não falava. Minha mãe pedia para não dizer palavrões porque atraía espíritos ruins. Eu não dizia. Não comer tanto doce na festa de aniversário. Eu não comia. Não fazer feio, respeitar os mais velhos, me comportar na sala de aula, me levantar quando um professor entrava. Tudo perfeito para um perfeito paumandado. E eu cresci assim, como um paumandado. Acreditando nas histórias todas que me contavam, nas estruturas todas que eu teria que sustentar. Os mais velhos, os patrões, os professores. Nasci em meio a um tempo sujo e negro, um tempo de rebeliões, revoluções. Me tranquei na quietude da obediência. Fui um filho de minha terra destes bem adestrados.
Aí eu pensei “É agora que esses filhodasputa nos matam”. O soldado tava abrindo o porta-luvas. Pedi licença. “Põe essa mão na cabeça, põe essa mão na cabeça”. Os caras gritaram comigo porque eu estava levando a mão ao bolso do paletó. Eu precisava mostrar que a gente era jornalista, tirar minha identificação e mostrar pra eles. Eu ia morrer mesmo. “Péra lá, péra lá! Eu só quero mostrar uma coisa. Olha” eles viram que eu pegava o documento. O soldado com a mão no porta-luvas cheio de cocaína do fusquinha. Eles viram que a gente era do Estadão. O capitão mandou que o soldado esperasse um pouco. “Cês tão brincando com a gente? Por que fugiram, caralho? Sabia que podiam ter morrido? Cês tão loucos? Vai, vai, vão pra casa. Mas vão com calma”.
Lógico, meu pai estava ali, contando mais uma história. Não havia morrido, não havia se estatelado no chão embaixo do Viaduto do Chá com uma bala na cabeça. Tudo não tinha passado de uma história de aventura que eu adorava. Todas as histórias me fascinavam e a vida... ia assim, meio de lado, passando ao longe das coisas físicas, ficando nos versos lindos de amor, no heroísmo das invenções.
“Porra, Meninão! Tá louco? Por que essa merda toda aí? Por que cê correu da polícia?” E o Meninão ria. O Meninão só ria.

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